‘Eddington’: Um Retrato do Caos da Era COVID e dos Tempos Modernos
Manipulação, Política e Erros que Dizem Muito
No início de “Eddington”, uma imagem curiosa já define o tom: um autocolante partidário proclama “Estão a Manipulá-lo!”, com um erro gramatical que salta à vista. O candidato, Joe Cross (Joaquin Phoenix), mais conhecido como o xerife da pequena cidade de Eddington, no Novo México, não parece importar-se com pormenores de gramática. Afinal, ele é polícia, não professor de português, e talvez o erro conquiste simpatias entre quem se sente incomodado por correções. Esta pequena falha serve de metáfora para o ambiente geral do filme e para o próprio estilo do realizador Ari Aster, onde manipulação – e até mesmo posse – são temas centrais.
Ari Aster: Entre a Conspiração e a Desordem
Ari Aster, argumentista e realizador de 39 anos, aclamado até por Martin Scorsese, construiu uma carreira em torno de narrativas sobre conspirações, jogos de confiança e sociedades secretas. O seu cinema está povoado por protagonistas sonâmbulos e finais de abalo, com o objetivo de provocar sempre uma reação intensa no público. Mesmo quando “Beau Tem Medo” (2023), protagonizado também por Phoenix, não cumpriu expectativas comerciais, Aster continuou a afinar o seu estilo, apostando em cenas viscerais e desconcertantes, como já tinha feito em “Midsommar”.
O fascínio de Aster por seitas é evidente, mas o interesse está igualmente dividido entre o choque entre tradição e modernidade e a oportunidade de exibir momentos de puro espetáculo, tanto dos seus vilões como do próprio realizador.
Um Filme Sobre o Absurdo da Pandemia
Logo no início de “Eddington”, o espectador é surpreendido: um homem idoso, descalço, atravessa a rua de uma cidade fantasma no Oeste americano, divagando e murmurando enquanto sobe uma colina ao entardecer. O ambiente é inquietante – e compreendemos de imediato por que as ruas estão vazias. O delírio do homem ganha outra dimensão: estará apenas perturbado ou enlouqueceu de vez após semanas de confinamento? Ou será, pelo contrário, o último são num mundo descontrolado? Em maio de 2020, até os mais equilibrados sentiam-se à beira do colapso.
A ameaça invisível da COVID pairava, vidas eram perdidas, sirenes não paravam. Mas havia ainda outra pandemia: o bombardeamento de ecrãs com factos, meias-verdades, desinformação e teorias absurdas. A realidade parecia-se mais com um filme do que com a própria vida.
“Eddington”: A Realidade Irreal em Foco
Esta sensação de realidade distorcida é aquilo que “Eddington” procura captar, um terreno no qual Ari Aster se sente em casa. Depois de “Hereditário” e “Midsommar”, ambos referências no terror psicológico, “Beau Tem Medo” revelou o lado mais pessoal do realizador. “Eddington” mantém este tom agridoce, misturando elementos de western com a angústia e o humor negro dos tempos de pandemia.
Personagens Entre o Isolamento e a Desconfiança
Joe Cross, o protagonista, é um xerife asmático em permanente tensão: vive com a esposa Louise (Emma Stone), que passa os dias a criar bonecos estranhos para vender online, e com a sogra Dawn (Deirdre O’Connell), viciada em teorias da conspiração no YouTube desde que a pandemia começou. No seio familiar, entre debates sobre a origem do coronavírus e o absurdo das medidas sanitárias, instala-se um ambiente de desconfiança e nervosismo.
Joe sente um ressentimento crescente pelo presidente da câmara, Ted Garcia (Pedro Pascal): um homem aparentemente perfeito, liberal e antigo namorado da sua esposa, o que só agrava a insegurança do protagonista. Para piorar, a imposição do uso de máscara em todo o condado gera conflitos, sobretudo porque Eddington não registou casos de COVID, e Joe não compreende por que todos insistem que ele use máscara, até dentro do carro.
Conclusão: Um Espelho dos Tempos
“Eddington” é, em última análise, um retrato mordaz da ansiedade coletiva e da confusão que marcaram o início da década. Ari Aster consegue transformar o caos da pandemia num comentário social sobre manipulação, identidade e o absurdo de tentar encontrar sentido quando tudo parece fora de controlo. O filme mistura o humor ácido com o desconforto, deixando o público tão desconcertado quanto fascinado – afinal, é exatamente isso que se espera de uma obra de Ari Aster.